domingo, 27 de janeiro de 2008

Antônio Gedeão


Descobri, há poucos dias, certo Antônio Gedeão, português que viveu de 1906 a 1997. Filho de um funcionário dos correios e uma dona de casa, formou-se em ciências química-físicas. Muito bom poeta. Encantei-me!
Sua poesia me lembra Augusto dos Anjos em certos aspectos, Gedeão também era fascinado pela ciência e, assim como em dos Anjos, ela também é uma constante em sua obra. Isso se pode constatar aqui:

Catedral de Burgos

A catedral de Burgos tem trinta metros de altura
e as pupilas dos meus olhos dois milímetros de abertura.

Olha a catedral de Burgos com trinta metros de altura!

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Curiosamente seu primeiro livro de poesia só foi publicado aos 50 anos de idade sob pseudônimo (chamava-se na verdade Rômulo Vasco da Gama de Carvalho).

O então presidente da república chegou a atribuir-lhe a Grã Cruz da Ordem de Mérito de Santiago da Espada (seja lá o que for isso, mas o nome é bem bonito! rsrs).

Vamos aos poemas: o mais famoso é "Pedra Filosofal", ficou conhecido após ser musicado pelo Manuel Freire (clique ao lado nos vídeos do youtube, eles abrirão aqui mesmo).

Vou colocar este que me encantou e divertiu:


Poema do alegre desespero

Compreende-se que lá para o ano três mil e tal
ninguém se lembre de certo Fernão barbudo
que plantava couves em Oliveira do Hospital,

ou da minha virtuosa tia-avó Maria das Dores
que tirou um retrato toda vestida de veludo
sentada num canapé junto de um vaso com flores.

Compreende-se.

E até mesmo que já ninguém se lembre que houve três impérios no Egipto
(o Alto Império, o Médio Império e o Baixo Império)
com muitos faraós, todos a caminharem de lado e a fazerem tudo de perfil,
e o Estrabão, o Artaxerpes, e o Xenofonte, e o Heraclito,
e o desfiladeiro das Termópilas, e a mulher do Péricles, e a retirada dos dez mil,
e os reis de barbas encaracoladas que eram senhores de muitas terras,
que conquistavam o Lácio e perdiam o Épiro, e conquistavam o Épiro e perdiam o Lácio,

e passavam a vida inteira a fazer guerras,
e quando batiam com o pé no chão faziam tremer todo o palácio,
e o resto tudo por aí fora,
e a Guerra dos Cem Anos,
e a Invencível Armada,
e as campanhas de Napoleão,
e a bomba de hidrogénio,
e os poemas de António Gedeão.

Compreende-se.

Mais império menos império,
mais faraó menos faraó,
será tudo um vastíssimo cemitério,
cacos, cinzas e pó.

Compreende-se.
Lá para o ano três mil e tal.

E o nosso sofrimento para que serviu afinal?

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(adorei a parte em que fazem tudo de perfil!!! srsrs)


Dez réis de esperança

Se não fosse esta certeza
que nem sei de onde me vem,
não comia, nem bebia,
nem falava com ninguém.
Acocorava-me a um canto,
no mais escuro que houvesse,
punha os joelhos á boca
e viesse o que viesse.
Não fossem os olhos grandes
do ingénuo adolescente,
a chuva das penas brancas
a cair impertinente,
aquele incógnito rosto,
pintado em tons de aguarela,
que sonha no frio encosto
da vidraça da janela,
não fosse a imensa piedade
dos homens que não cresceram,
que ouviram, viram, ouviram,
viram, e não perceberam,
essas máscaras selectas,
antologia do espanto,
flores sem caule, flutuando
no pranto do desencanto,
se não fosse a fome e a sede
dessa humanidade exangue,
roía as unhas e os dedos
até os fazer em sangue.
**

E o último deles, para meus leitores que - como eu - adoram a metalinguagem, vai este pra fechar esta postagem:

Vidro Côncavo


Tenho sofrido poesia
como quem anda no mar.
Um enjoo.
Uma agonia.
Sabor a sal.
Maresia.
Vidro côncavo a boiar.

Dói esta corda vibrante.
A corda que o barco prende
à fria argola do cais.
Se vem onda que a levante
vem logo outra que a distende.
Não tem descanso jamais.


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Quer ler A. Gedeão? Então clique aqui e aqui

Muito beijos e até a próxima!