Descobri, há poucos dias, certo Antônio Gedeão, português que viveu de 1906 a 1997. Filho de um funcionário dos correios e uma dona de casa, formou-se em ciências química-físicas. Muito bom poeta. Encantei-me!
Sua poesia me lembra Augusto dos Anjos em certos aspectos, Gedeão também era fascinado pela ciência e, assim como em dos Anjos, ela também é uma constante em sua obra. Isso se pode constatar aqui:
A catedral de Burgos tem trinta metros de altura
e as pupilas dos meus olhos dois milímetros de abertura.
Olha a catedral de Burgos com trinta metros de altura!
**Curiosamente seu primeiro livro de poesia só foi publicado aos 50 anos de idade sob pseudônimo (chamava-se na verdade Rômulo Vasco da Gama de Carvalho).
O então presidente da república chegou a atribuir-lhe a Grã Cruz da Ordem de Mérito de Santiago da Espada (seja lá o que for isso, mas o nome é bem bonito! rsrs).
Vamos aos poemas: o mais famoso é "Pedra Filosofal", ficou conhecido após ser musicado pelo Manuel Freire (clique ao lado nos vídeos do youtube, eles abrirão aqui mesmo).
Vou colocar este que me encantou e divertiu:
Poema do alegre desespero
Compreende-se que lá para o ano três mil e tal
ninguém se lembre de certo Fernão barbudo
que plantava couves em Oliveira do Hospital,
ou da minha virtuosa tia-avó Maria das Dores
que tirou um retrato toda vestida de veludo
sentada num canapé junto de um vaso com flores.
Compreende-se.
E até mesmo que já ninguém se lembre que houve três impérios no Egipto
(o Alto Império, o Médio Império e o Baixo Império)
com muitos faraós, todos a caminharem de lado e a fazerem tudo de perfil,
e o Estrabão, o Artaxerpes, e o Xenofonte, e o Heraclito,
e o desfiladeiro das Termópilas, e a mulher do Péricles, e a retirada dos dez mil,
e os reis de barbas encaracoladas que eram senhores de muitas terras,
que conquistavam o Lácio e perdiam o Épiro, e conquistavam o Épiro e perdiam o Lácio,
e passavam a vida inteira a fazer guerras,
e quando batiam com o pé no chão faziam tremer todo o palácio,
e o resto tudo por aí fora,
e a Guerra dos Cem Anos,
e a Invencível Armada,
e as campanhas de Napoleão,
e a bomba de hidrogénio,
e os poemas de António Gedeão.
Compreende-se.
Mais império menos império,
mais faraó menos faraó,
será tudo um vastíssimo cemitério,
cacos, cinzas e pó.
Compreende-se.
Lá para o ano três mil e tal.
E o nosso sofrimento para que serviu afinal?
**
(adorei a parte em que fazem tudo de perfil!!! srsrs)
Se não fosse esta certeza
que nem sei de onde me vem,
não comia, nem bebia,
nem falava com ninguém.
Acocorava-me a um canto,
no mais escuro que houvesse,
punha os joelhos á boca
e viesse o que viesse.
Não fossem os olhos grandes
do ingénuo adolescente,
a chuva das penas brancas
a cair impertinente,
aquele incógnito rosto,
pintado em tons de aguarela,
que sonha no frio encosto
da vidraça da janela,
não fosse a imensa piedade
dos homens que não cresceram,
que ouviram, viram, ouviram,
viram, e não perceberam,
essas máscaras selectas,
antologia do espanto,
flores sem caule, flutuando
no pranto do desencanto,
se não fosse a fome e a sede
dessa humanidade exangue,
roía as unhas e os dedos
até os fazer em sangue.
**
E o último deles, para meus leitores que - como eu - adoram a metalinguagem, vai este pra fechar esta postagem:
Vidro Côncavo
Tenho sofrido poesia
como quem anda no mar.
Um enjoo.
Uma agonia.
Sabor a sal.
Maresia.
Vidro côncavo a boiar.
Dói esta corda vibrante.
A corda que o barco prende
à fria argola do cais.
Se vem onda que a levante
vem logo outra que a distende.
Não tem descanso jamais.
**
Quer ler A. Gedeão? Então clique aqui e aqui
Muito beijos e até a próxima!
3 comentários:
Adorei! Quanta gente boa na literatura, que não conhecemos. Engraçado, dar pra musicar e lembrou-me Fernando Pessoa. Assim exatamente nesta ordem. Bjs.
Pensando aqui com meus botões... muitas vezes temos o preconceito do sotaque, da própria palavra, quanta bobagem. Hoje me delicio ouvindo português de Portugal. Obrigado pelos vídeos. Bjs.
Bom esse Gedeão, hein!?
Beijinhos.
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